Selasa, 01 November 2016

Ferida aberta...



Ao Luis: pelas lutas, pelas utopias...


O sangue aparece, escorre. A carne está viva, a mostra. Os mais espertos notam que algo não está tão belo e perfeito. Há um problema. Mas o corpo poderoso continua a andar, desfila poder e ostentação. Fala com legitimidade, diz o que deve ser feito: como pensar e falar. À frente: todos se encantam, ele parece ter autoridade. Grande sujeito que sai para vencer. Cada passo, um sinal de força. Mas não há como esconder: “olha a ferida”, grita a criança! O corpo, cheio de poder, desconversa: “Ela está fechada! Cala a boca, menina! Ela morreu, é esquecimento. Está superada!”. Mas não adianta, ela não está morta. Ao olhar direito, nem tudo é tão saudável. Nem tudo é saúde. O sangue aparece, escorre. A carne está viva, a mostra...

Desde os meus primeiros anos nos estudos teológicos, conheci um jeito de fazer-teologia que buscou a oportunidade e o direito de pensar e refletir sobre a nossa gente, as nossas marcas, a partir do nosso mundo e do nosso povo. Teologia construída a partir do mundo dos que sofrem, das vítimas. Teologia latino-americana da Libertação. Um movimento teológico originário nas décadas de 1970 e 1980 que em sua reflexão “privilegia a situação de dominação, o avanço do capitalismo selvagem e seus efeitos, os movimentos sociais e populares de libertação, a presença da Igreja no coração do grito dos pobres” (João Batista Libânio).

Para isso, confessa desde o seu início a opção preferencial pelos pobres como núcleo da experiência teologal, e a teologia como ato segundo, nascendo da vida. Não dos dogmas (segure o coração fundamentalista!). Ela é construída em mutirão, a partir de baixo. Das experiências do povo de Deus, não dos conceitos. As estórias da Bíblia são como espelhos da nossa vida, como paradoxo das experiências de muitas gentes com o seu Deus, libertador. Espelho e convite para caminhar com o Abba na história. Junto a este projeto, busca-se a “libertação da teologia” dos dogmas ligados às classes e os processos dominantes, sem as teologias importadas (mesmo que dialogue com elas) e jeitos de ser do outro, do centro: eu-ropeu, estado-unidense. Somos latino-americanos, precisamos nos pensar.

Muitos já declararam a sua morte. O fim da teologia que toma a história como história dos oprimidos, como história daqueles que não tem palavra; que luta por justiça e pelo pão nosso de cada dia; que tem como centro a busca por sinalizar o reino de Deus em nosso mundo, pois “cremos na vida antes da morte”; que nasce do contexto daquela/e que sente dor, que sofre, criticando e buscando a transformação desta realidade. É a morte, com certidão de óbito (por volta de 1989), de um novo jeito de fazer teologia que está a serviço da transformação social, com caminhos de libertação sociopolítica. Com a busca profética da transformação das estruturas que geram morte e servem às lógicas do Império e da idolatria (Santo capital-mercado: orai por nós). É o enterro de uma teologia que – mesmo utilizando-se de instrumentais marxistas – tem como motor, não as bases econômicas, mas a espiritualidade: o Espírito que é “a ‘Fonte de vida’, trazendo vida para dentro do mundo: vida total, vida plena, irrestrita, indestrutível, vida eterna” (Jürgen Moltmann). Espírito que leva à luta e à festa, ao confronto contra a opressão e à folia do reino. Teologia que fala do seguimento de Jesus, com as suas escolhas: “honradez para com a realidade, parcialidade para com o pequeno, misericórdia fundante, fidelidade ao mistério de Deus...” (Jon Sobrino).


Mas algo está estranho. Mesmo que a neguem, a Teologia da Libertação aparece aberta, renovada, com olhares ampliados a partir de novos problemas ligados a etnia, gênero, criação, pluralismo religioso. A instituição deseja a sua morte, mas ela ainda permanece viva dentro dos movimentos populares, de movimentos nas Igrejas, nas Faculdades de Teologia (mesmo que os do poder queiram matá-la, ameaçá-la!) e nas mãos, na mente, nos olhos e nos pés de jovens teólogos – como eu – que a assumem como lugar e espaço para fazer teologia, não como prisão: mas como liberdade, libertação. A ferida está aberta no corpo das instituições (Paulo Suess). O sangue aparece, escorre. A carne está viva, a mostra. Mesmo que coloquem panos, adesivos. Mesmo que tentem silenciar a voz de quem não segue os modelos das alianças com as teologias neoliberais – a voz continua a bradar. Mesmo que seja apenas uma voz que brote do sangue, como Abel. “Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde seja” (Eduardo Galeano).
Não há como esconder: “olha a ferida”, grita a criança! Ela sangra, está aberta

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